Durante a pandemia de COVID-19, destaques nos grandes meios de comunicação e muitos posts nas redes sociais que falavam da África (de forma geral ou de algum país específico) comumente envolviam projeções preocupantes e falas racistas. Cabem aqui algumas perguntas: O que essa tendência reducionista gera em quem lê? Por que é tão difícil revertê-la? As respostas são múltiplas e muitos estudos (em várias partes do mundo, inclusive no Brasil) têm se dedicado a desenvolvê-las.
Em meio a diversos estímulos para reinventarmos nossos modos de pensar e agir perante tantas incertezas, confira abaixo cinco reflexões que podem contribuir para questionarmos o viés ainda predominante acerca da África e do lugar que o continente ocupa no mundo contemporâneo:
Projeção do protagonismo africano
Coberturas jornalísticas costumam noticiar decisões governamentais impactantes que lidam com problemas socioeconômicos de formas a destacar o papel desempenhado pelas lideranças envolvidas. Dentre o que repercute sobre o continente africano, países instáveis ou ditadores costumam ser predominantes no imaginário e nas notícias se comparados às outras formas de regimes políticos existentes. Restringir-se a exaltar as figuras de Nelson Mandela ou Kofi Annan significa contribuir com o apagamento de tantos/as outros/as protagonistas africanos/as que vêm atuando em várias frentes. A primeira ministra da Namíbia, Saara Kuugongelwa, e a sul-africana Phumzile Mlambo-Ngcuka, Diretora Executiva da ONU Mulheres, são apenas dois exemplos em meio a tantos outros. Com relação à pandemia, o sucesso das ilhas Maurício (com taxas de infecção menores que de outras ilhas europeias) no combate à pandemia, contrariando a expectativa da OMS para aquele país, nos serve como alerta sobre como muitos aspectos das capacidades técnicas e experiências africanas são ignorados ou silenciados.
Produção literária e científica
A excelência de trabalhos acadêmicos e o primor literário que mais comumente povoam o imaginário e (infelizmente) ementas e currículos no Brasil e em várias partes do mundo são ainda europeias e estadunidenses. Compartilhar e incentivar mais leituras acadêmicas (em múltiplas áreas do saber) e jornalísticas de autorias africanas contribui com a ampliação da nossa visão de mundo e questionamentos mais refinados para desnaturalizar a imagem da Europa como referência preponderante de cultura e a ciência para o mundo. A nigeriana Bibi Bakare-Yusuf e o camaronês Achille Mbembe são dois dos nomes que estão contribuindo para disseminar pensamentos que reverberam a demanda por perspectivas mais complexas sobre contribuições culturais e intelectuais africanas.
África e Organismos Internacionais
Assim como no Conselho de Segurança da ONU e no Fundo Monetário Internacional, há vários outros fóruns em que podemos encontrar barreiras diversas para que países africanos tenham maior peso nas tomadas de decisão. Ainda assim, devemos ponderar o papel que os governos e as instituições africanas têm desempenhado contestando ou se adaptando ao status quo. O Consenso de Ezulwini, estabelecido em 2005, propondo dois assentos permanentes para países africanos no Conselho de Segurança da ONU, nos serve como exemplo da articulação da União Africana, que vem se mobilizando com várias organizações intergovernamentais do mesmo continente e protagonizando outras ações no cenário internacional.
Crescimento e desenvolvimento africano
Concentrando os países classificados como menos desenvolvidos do mundo (com base nas diminutas rendas per capita e outros dados relacionados à qualidade de vida), a África é muitas vezes vista como homogênea e estagnada nesse sentido. Precisamos desmistificar muitas simplificações sobre as sociedades e seus desafios no continente africano, para que possamos enxergar além das dificuldades de vários países africanos em erradicar a pobreza extrema ou das projeções de maior crescimento econômico das economias africanas que das economias avançadas. Na era da globalização, sub-regiões africanas seguem ou remodelam a lógica capitalista de muitas formas, construindo suas aproximações e lidando com disputas internas e externas. Além disso, melhores condições de vida têm sido buscadas por iniciativas africanas não só por meio de cooperação internacional mas também com estratégias locais envolvendo, por exemplo, grupos de ajuda mútua e lideranças tradicionais africanas.
Mudança climática na África
A priori, lidar com a mudança climática requer esforços mundiais. Apesar disso, o caráter desproporcional entre o papel que o continente africano tem nas principais causas da mudança climática e o quanto a mesma região sofre e irá sofrer suas consequências é um elemento-chave na compreensão desse impacto. O volume de recursos necessários e a melhoria na infraestrutura do continente figuram dentre as maiores preocupações apontadas por um grande número de especialistas. Desafios relacionados à degradação florestal e o papel das multinacionais estrangeiras se somam a muitas outras questões que figuram no cerne das discussões sobre a ordem internacional vigente. Nesse sentido, o sistema internacional de taxação de empresas e o sistema monetário mundial possuem, portanto, configurações que não condizem com a realidade do segundo continente mais populoso do mundo.
Conclusão
De qualquer forma, principalmente em um cenário de pandemia de COVID-19, tem ficado mais evidente que o olhar sobre o continente africano precisa ser pautado por concepções que não sejam eurocêntricas ou economicistas. Caso contrário, estaremos desconsiderando aspectos cruciais da dinâmica daquele continente e das mudanças urgentes na ordem internacional.