Por Carla Trabazo
A eleição que marcaria o 11º ano consecutivo de Benjamin Netanyahu como primeiro-ministro de Israel seria um feito sem precedentes, não fosse um pequeno obstáculo em seu caminho: formar uma coalizão para poder seguir governando.
Na política de Israel, não basta conquistar a maioria dos votos, o líder do partido tem que reunir pelo menos 61 parlamentares em sua base para enfim estabelecer um governo. Nas eleições de abril, o Likud, partido liderado por Netanyahu, saiu vitorioso apenas na primeira parte e, sem formar a coalizão necessária (faltou apenas uma cadeira), o parlamento decidiu dissolver-se e convocar novas eleições para o dia 17 de setembro deste ano.
Esta é a primeira vez que uma situação deste tipo acontece em Israel, o que significa uma grande derrota política e um duro golpe à imagem de Netanyahu, visto como um conciliador e ótimo estrategista. “Ele vem enfrentando acusações de corrupção, já estava fragilizado e agora ainda mais com esta derrota”, analisa Karina Calandrin, coordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade Sagrado Coração e mestra e doutoranda em Relações Internacionais.
Desde 2018, o primeiro-ministro enfrenta quatro acusações de corrupção, já tendo sido indiciado em duas. As denúncias vão desde lavagem de dinheiro e suborno até favorecimento de privilégios a empresários em troca de presentes (como vinhos e ingressos de shows internacionais).
Ainda que estas questões judiciais tenham considerável peso, uma mudança na Constituição que dispensa o serviço militar de um abastado grupo religioso do país pode ser o maior motivo para a nova crise política.
Religião na política de Israel
Todos os cidadãos israelenses devem servir ao exército ou atuar em algum outro serviço nacional. Desde 1948, porém, a lei não se aplica ao grupo ultra-ortodoxo denominado Haredim – o qual compõe menos de 10% da população. A medida é vista como injusta pela maioria dos israelenses e o Supremo Tribunal do país também compartilha da mesma opinião.
Em 2017, o tribunal declarou a dispensa como inconstitucional e exigiu uma revisão judicial. Desde então, o órgão concordou em conceder ao governo alguns adiamentos, mas agora o prazo está próximo. O novo governo, quando finalmente formado, deve formular uma nova lei que mantenha a dispensa do serviço nacional aos Haredim. Do contrário, o tribunal poderá anular a medida, provocando assim uma nova tensão política e social.
A questão é que os Haredim possuem um partido forte no parlamento, essencial para a formação de coalizões – recurso muito utilizado por Netanyahu em seus mandatos, que em troca os defende na isenção do serviço militar e outros privilégios. A aliança funcionava muito bem, até estas últimas eleições, quando o líder do partido Yisrael Beiteinu, Avigdor Lieberman, separou-se do governo.
“O partido de Lieberman saiu da coalizão em novembro do ano passado, sob a justificativa de que foi uma questão política interna, relacionada ao serviço militar para os Haredim. Ele queria que Netanyahu desfizesse essa lei, mas esse é um grupo religioso que tem muito poder político. É como a bancada evangélica no Brasil. Ainda que não seja religioso, Netanyahu se apoia muito nos Haredim”, afirma Karina.
E de onde vem esse interesse “repentino” pelo alistamento dos Haredim?
De acordo com a analista de relações internacionais, a curto prazo não haveria mudanças expressivas com a revogação da lei, pois o grupo ainda representa uma parcela muito pequena da população. A longo prazo, porém, levanta-se uma questão demográfica importante.
“Israel, assim como países europeus e outros desenvolvidos, estão com problemas demográficos, onde a população está envelhecida. Assim, a longo prazo, Israel terá uma população jovem cada vez menor. Os Haredim têm um número muito maior de filhos, muito acima da média do país: 2 pra 8. É um número muito grande e é apenas a média, tem famílias com mais de 12 filhos. Hoje não significa muita coisa ainda, mas no futuro pode ser um balanço para a segurança de Israel. Essa preocupação é para daqui a uns 20, 40 anos, que pesará muito para as forças armadas de Israel”, explica Karina.
De acordo com o escritório de estatísticas do país, os Haredim duplicam de número a cada 10 ou 15 anos e, até 2065, um terço da população israelense será Haredi.
O partido Yisrael Beiteinu representa a maioria dos eleitores de origem russa e do oeste europeu, os quais possuem uma história secular e não concordam com ultra-ortodoxos que exercem o poder político para “instituir políticas religiosamente coercivas”, segundo declaração de Lieberman. Assim, a pressão do Supremo Tribunal e o surgimento dos casos de corrupção do primeiro-ministro podem ter significado o momento ideal para a retirada do apoio partidário.
“Lieberman sai com uma imagem fortalecida com essa dissolução do governo. Ele mostra uma ideia de coerência política, pois não quis ‘se vender’ para o governo e seguiu suas próprias convicções políticas. Talvez, com isso, ele possa angariar mais votos nas próximas eleições”, afirma Karina.
E agora?
Novamente, o país se encontra politicamente paralisado. Até setembro, os partidos deverão seguir fazendo campanhas e acordos de aliança e, após as eleições, o partido vencedor iniciará sua corrida para formar o governo.
De acordo com a analista, o partido Azul e Branco, que surgiu em eleições anteriores para fazer frente a Netanyahu, continuará existindo e buscando se fortalecer. “A aliança do partido deu certo, eles conseguiram 35 cadeiras, quando antes não passavam de 8. Foi uma votação muito expressiva, então irão manter”.
Formado por um partido novo e um mais tradicional, os integrantes do Azul e Branco têm uma postura abertamente crítica ao atual governo, principalmente para questões econômicas. O partido declara-se de centro-esquerda e liberal e tem sido um dos principais fatores para o enfraquecimento da esquerda no país.
“Ao contrário de países ocidentais, como Estados Unidos e Brasil, Israel começou com a esquerda no poder, desde a sua fundação, e assim ficaram durante 30 anos. Da década de 60 até 2009, havia uma alternância no poder entre direita e esquerda, mas, assim como ocorre no mundo inteiro, essa onda conservadora tomou conta do país, começando assim o governo de Netanyahu”, diz Karina.
“A esquerda de Israel nesta eleição teve um baque muito grande, principalmente porque os eleitores preferiram votar no partido Azul e Branco, ao invés da própria esquerda, para tentar derrotar a direita. Com isso, a esquerda ficou debilitada, conquistando apenas seis cadeiras no governo. Nas eleições anteriores eram 24 cadeiras”, continua.
A tendência, então, é que a estratégia das eleições anteriores se mantenha, pois partidos de centro têm conseguido angariar mais votos contra a direita e alcançado os indecisos.
A questão da Palestina
Enquanto isso, o país fica parado e nenhuma pauta importante será votada. Até a formação do próximo governo, esse período de paralisação irá completar quase um ano. De fato, a convocação das novas eleições ocorreu no mesmo momento em que uma comitiva do presidente americano, Donald Trump, aterrissava em Jerusalém para revelar um novo acordo de paz na região.
Netanyahu, porém, declara abertamente que pretende anexar a Cisjordânica a Israel. Quando as últimas eleições indicaram maioria de voto para seu partido, ele afirmou novamente em discurso a tomada da região. “Isso, porém, não é algo fácil, que se faz da noite pro dia. É uma estratégia política e eleitoral. O governo dele é o que mais aumentou assentamentos na Cisjordânia”, diz Karina.
Perguntada sobre os próximos passos para as negociações de paz com a Palestina, a analista é enfática: “eu não vejo saída para o processo de paz, vejo que haverá um aumento de assentamentos a ponto de que não tenha como expulsar todos de lá. É muito difícil tirar meio milhão de pessoas de casa, pessoas que vivem lá há tempos, há gerações. A estratégia de Netanyahu é aumentar o número de israelenses vivendo lá para que possa anexar, pelo menos, algumas partes”.