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Existem crianças soldado no Brasil e na América Latina?

O uso de crianças soldado em guerras contemporâneas se tornou uma característica comum em uma série de países. Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF), em 1998, dos 31 países em conflito armado na época, 87% usavam crianças soldado (integradas a forças armadas estatais e grupos não estatais) e destes, 71% usavam menores de 15 anos.

Em 2002, o número de grupos armados não estatais no mundo que recrutavam crianças era de 23, já em 2006 esse número saltou para 40 e, em 2007, chegou a 57 grupos.

Arrancados de suas famílias, os jovens soldados são submetidos a treinamentos com armas pesadas e a um doutrinamento ideológico. Muitas são obrigadas a matar e a torturar para se manter vivas. Meninas também são recrutadas, mas além de atuarem como soldados ainda são utilizadas para um outro objetivo: servir de escravas sexuais e “esposas” de integrantes do grupo armado.

É neste quadro mundial deplorável que a Assembleia Geral das Nações Unidas decidiu adotar um Protocolo Facultativo para a Convenção sobre os Direitos das Crianças, em 2000, que protegeria as crianças e adolescentes contra o recrutamento e os terrores que envolvem um conflito armado. A UNICEF já contabilizou 125 países assinantes e 130 nações que ratificaram o protocolo.

Estes países concordam em impedir que qualquer pessoa menor de 18 anos desempenhe qualquer função regular ou irregular de força ou grupo armado em qualquer capacidade, incluindo atuação como cozinheira, carregadora, mensageira e aqueles que acompanhem esses grupos e não tenham relações familiares diretas. As funções abrangem, ainda, o recrutamento de meninas para fins sexuais e casamentos forçados. Assim, o termo criança soldado não envolve apenas um menor carregando uma arma, mas sim uma série de fatores que resulta na sua participação direta ou indireta no combate.

A ideia de criança soldado remete, na maioria das vezes, ao continente africano, mas a América Latina, ainda que possua países signatários do protocolo, possui uma quantidade considerável de grupos que já recrutaram ou ainda recrutam menores de 18 anos, são eles:

El Salvador
A guerra civil em El Salvador, que aconteceu entre 1980 e 1992, contabilizou cerca de 48 mil crianças e adolescentes em suas frentes militares (o equivalente a 80% de um total de 60 mil combatentes), segundo relatório da The Defense Monitor. Tanto a Frente de Libertação Nacional Farabundo Martí (FMLN) quanto as Forças Armadas de El Salvador (FAES) incorporaram crianças.

Fotografía Gió Palazzo

Foto: Gió Palazzo

“Em 1998–1999 a Universidade Centro Americana José Simeón Cañas (UCA) e o Fundo das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF) fizeram um levantamento de cerca de 300 antigas crianças soldados das FAES e da FMLN e descobriram que três quartos dos antigos membros da FMLN que responderam haviam sido recrutados com entre 10 e 14 anos, enquanto 80 por cento dos recrutas das FAES tinham 15 anos ou mais à época do engajamento”, disse John Sullivan, autor do artigo “Crianças Soldado: desespero, retorno à barbárie e conflito”.

Ele afirma, ainda, que à medida em que o conflito foi piorando, o número de combatentes com menos de 15 anos aumentou, mas seu recrutamento passou a ser dedicado ao envio destas crianças à retaguarda e frente de combate, ao invés de pequenas funções de cozinha ou entrega de mensagens.

Nicarágua e México
Durante o conflito armado da Nicarágua (1980), despertada por questões políticas, onde o governo (sandinistas) enfrentava a oposição dos Contras, houve o registro da presença de crianças soldado.

Enquanto isso, no México, milícias se utilizam, ainda hoje, de crianças soldado para engrossar seus grupos.

Peru
O Sendero Luminoso, braço radical do Partido Comunista Peruano (PCP-SL), apesar de uma rápida queda de atuação durante os primeiros anos da década de 2000, voltou com grande força nos últimos anos, fazendo retornar uma guerra de propaganda política e ideológica.

Recentemente, vídeos foram compartilhados incessantemente nas redes sociais mostrando meninos e meninas, aparentando ter cerca de 10 anos, gritando contra o imperialismo e defendendo a revolução comunista, uma tentativa do Sendero Luminoso de reconquistar poder.

Ainda que o grupo não faça mais o recrutamento de crianças como no passado, quando o ápice ocorreu entre 1989 e 1991, o Ministério das Mulheres do Peru criou um programa para receber na capital e nas comunidades andinas crianças que o exército ainda recupera em zonas de ocupação do Sendero.

Paraguai
O Exército do Povo Paraguaio (EPP), grupo guerrilheiro de orientação marxista, costuma recrutar crianças para aumentar suas fileiras. Nos últimos anos o EPP divulgou vídeos em que aparecem jovens entre 15 e 17 anos em meio aos integrantes da guerrilha .

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Foto: Estadão

Apesar de contar com crianças em suas frentes, o EPP não faz recrutamento forçado, mas sim por cooptação. “As comunidades vivem na pobreza e abandono. Os adolescentes externam sua revolta  e descontentamento aderindo ao movimento”, explica o professor Tomaz Esposito, da Universidade Federal de Dourados em entrevista ao Estadão.

O professor diz, ainda, que o processo de formação dos rebeldes se parece ao método do tráfico brasileiro, onde os jovens se aproximam das lideranças e criam laços com elas.

Haiti
No Haiti a violência armada e tensões deram espaço ao advento de gangues criminosas, muitas com fortes laços com partidos políticos. Estes grupos controlam territórios em diversas cidades, principalmente na capital, Porto Príncipe, e recrutam crianças como combatentes, informantes e transportadoras de armas e drogas.

Colômbia
O país é o maior foco de crianças soldado na América Latina. Grupos como as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC), o Ejército de Liberación Nacional (ELN) e outros grupos paramilitares, em conflito há mais de 50 anos, utilizam-se largamente destas crianças, principalmente as que vivem em áreas rurais, onde é comum que as famílias sejam obrigadas ou, por questões de sobrevivência, a entregar seus rebentos, já que as Farc, por exemplo, entregam uma espécie de salário à família pelos serviços da criança.

As crianças colombianas, porém, não são exclusividade deste grupo, que recruta ainda venezuelanas, bolivianas, equatorianas e panamenhas. Ao menos um em cada quatro combatentes na Colômbia possui menos de 15 anos.

Brasil e o tráfico
“A existência de estruturas sistêmicas de pobreza e desigualdade social juntamente com a ausência do Estado e o surgimento de novos atores não estatais para suprir esses vazios fazem da América Latina um dos continentes mais violentos do mundo. Crianças são envolvidas nesses ciclos de violência desde pequenas e acabam cooperando e sendo alistadas em grupos armados para exercerem diversos papéis”, afirma Patrícia Nabuco Martuscelli, autora do artigo “O Invisível Caso do Uso de Crianças Soldado na Colômbia: Implicações nas Relações Internacionais”.

Apesar de não viver uma guerra declarada, no Brasil existe uma guerra às drogas e ao tráfico que já contabilizou milhões de mortes, tanto do lado da polícia quanto da favela. Alguns escritores afirmam que as crianças que trabalham com o tráfico são sim meninos soldado e, parando para analisar a situação, pode-se fazer uma relação direta destes brasileiros com as demais crianças soldado da América Latina e do mundo.

De início, as crianças são recrutadas indiretamente, uma vez que não se sentem esperançosas com o que o futuro na favela lhes guarda, elas acreditam que a vida no tráfico concederá mais dignidade e dinheiro para ajudar a família.

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Foto: Agência Brasil

Elas começam com pequenas funções, seja como “aviões” (entregadores de mensagens), fogueteiros (espécie de olheiros) ou vapores (vendedores de drogas nos pontos), enquanto crianças em conflitos quando ainda pequenas trabalham como cozinheiras, carregadoras, espiãs, mensageiras, entre outros.

Em constante contato com líderes do tráfico, as crianças passam a aprender como funciona o dia a dia destas pessoas, começando a agir como elas e, no futuro, ganham lealdade suficiente para receber uma arma e participar de rixas entre facções e confrontos com a polícia.

“As favelas do Rio de Janeiro são um caso prático de crianças envolvidas com a violência armada. Há mais gente (especialmente crianças) morrendo pelas balas de armas pequenas no Rio do que em muitos conflitos armados convencionais. Embora os grupos armados não sejam politicamente orientados, as facções de narcotraficantes do Rio representam uma presença paramilitar ostensivamente armada e territorialmente definida na maior parte das favelas da cidade”, diz John Sullivan.

A situação no Rio não é de guerra convencional. Com isso, ativistas dos direitos das crianças não concordam com o termo “crianças soldado” visto que as facções traficantes não têm o objetivo de derrubar o Estado. Passou-se, então, a chamar esses jovens de “crianças e adolescentes na violência armada organizada” (COAV), um termo que acaba por negar a real situação, impedindo uma possível iniciativa que combata a inserção destas crianças no tráfico.

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