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Pandemia e (des)igualdade de gênero

Pandemia e (des)igualdade de gênero

A pandemia veio como um binóculo capaz de evidenciar vulnerabilidades e potencialidades em nós e no mundo. Pudemos observar de perto e até mesmo experenciar realidades desconhecidas, sentir a privação da liberdade e a dificuldade de acesso a produtos e serviços, se deparar com o distanciamento social, com a insegurança e até com a morte. Realidades que sabíamos que já existiam para alguns, mas que eram invisibilizadas ou até mesmo naturalizadas. Apesar do vírus não ter escolhido um alvo, infectando pessoas indiscriminadamente, é necessário reconhecermos de que forma a pandemia tem afetado e reforçado estruturas violentas e desiguais pré-existentes.

Clare Wenham, professora de Política de Saúde Global na London School of Economics and Political Science destacou que: “Quando você está pensando em uma pandemia, é preciso diferenciar entre o que vem de ser infectado e o que vem de ser afetado[1]”. Esta declaração é assertiva quando se analisa a pandemia sob uma perspectiva de gênero, considerando elementos como saúde, trabalho, vida pública e privada, família, raça, violência e educação.

No artigo “COVID-19: the gendered impacts of the outbreak[2]”, publicado no The Lancet, em coautoria com Julia Smith e Rosemary Morgan, Clare Wenham mostra que durante o surto de Ébola na África Ocidental as mulheres ocupavam a função de cuidadoras e profissionais de saúde. Por outro lado, possuíam menos participação e representação nas tomadas de decisão em relação à crise, o que consequentemente eliminou as pautas que abordavam as necessidades femininas, como as questões de saúde sexual e reprodutiva, o que favoreceu o alto índice de mortalidade de mulheres neste período.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Fundo Monetário Internacional (FMI)[3], as mulheres são as mais afetadas no mercado de trabalho, sendo as mais mal remuneradas e com menos proteção legislativa laboral. Com as economias fragilizadas pela pandemia, o desemprego afetou as mulheres de forma impactante, uma vez que elas compõem a maior parte dos trabalhadores informais, com ênfase nas mulheres negras e imigrantes. Em relação à situação de trabalho das profissionais de saúde, há frequentemente casos de abuso e assédio por parte da equipe ou pacientes, situação que se agravou com a pandemia, levando em conta que as mulheres compõem 70% de todo o pessoal que está na linha de frente. Apesar desta grande porcentagem, quando se refere aos processos decisórios e de liderança, a maioria dos diretores executivos de organizações de saúde são homens, o que mostra a clara hierarquia de gênero neste segmento sustentada por estereótipos e o patriarcalismo institucional.

Em relação à vida privada, o confinamento propiciou divisões desproporcionais de tarefas domésticas, reforçando desigualdades pré-existentes. Os estereótipos de gênero associam as mulheres como cuidadoras, colocando-as como responsáveis pelo cuidado com a casa e família. Apesar de movimentos para a desconstrução destas definições, há ainda muitas culturas que mantém essa organização em casa, definindo o homem como o provedor financeiro e da proteção.

Com as pausas nas aulas presenciais das crianças, a rotina de conciliação das tarefas do dia a dia se tornou um grande desafio, e as mulheres têm sido as maiores responsáveis por garantir o acompanhamento escolar dos filhos. Há as mães que podem fazer isso e há ainda aquelas que são atravessadas por dificuldades maiores, por exemplo serem mãe solo ou por não poderem exercer home office por terem vínculo de trabalho informal. A desigualdade no ambiente doméstico acaba por reforçar relações de poder e podem manter as mulheres em ligações de dependência e subalternidade, estando suscetíveis às diversas formas de violência.

Ainda em relação à infância, há situações em que meninas são forçadas a deixar os estudos para trabalhar e outras em que as famílias procuram maridos para garantir o futuro da filha, como é o caso da Índia, mostrado no relatório do Fundo Malala Girl’s Education and COVID-19[4]. Casos como esse, impulsionados pela pandemia, privam as meninas do acesso à educação, intensificando a pobreza e perpetuando um ciclo de violências e desigualdades.

Dentre este ciclo de violências diretas e estruturais pré-existentes e fortalecidas pela pandemia, a violência doméstica gerou grande preocupação devido ao confinamento. Apesar do aumento no número de casos, em alguns países as chamadas para linhas de proteção e denúncia caíram pelo fato das vítimas se sentirem inseguras. Esse fato abre espaço para um debate sobre a desconstrução da romantização do lar como um ambiente seguro, sendo muitas vezes um cenário de terror e luta por sobrevivência.

De acordo com o artigo “A Pandemic within a Pandemic – Intimate Partner Violence during Covid-19” publicado no The New England Journal of Medicine[5], uma a cada quatro mulheres e um a cada dez homens sofrem de Violência por Parceiro Íntimo (VPI), podendo ser física, psicológica, moral, patrimonial ou sexual. Um dos fatores que mantém a pessoa presa ao seu agressor é a dependência financeira, uma questão problemática pelo fato de não possuir uma alternativa de assistência econômica. Esta questão nos leva a reforçar a importância da promoção e valorização da educação e capacitação de pessoas para o mercado de trabalho, juntamente com o apoio e incentivo ao empreendedorismo.

Há muito ainda o que se explorar sobre as consequências da pandemia para a questão da igualdade de gênero. Para já, após esta breve análise, venho apontar que este ano comemora-se o 25º aniversário da Plataforma de Ação de Pequim[6] (designação atribuída ao documento adotado na IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Mulheres) e o 20º aniversário da Resolução 1325 sobre Mulheres, Paz e Segurança[7] do Conselho de Segurança da ONU, tornando-se fundamental lembrarmos que a igualdade de gênero é um pilar para a construção de uma sociedade mais pacífica e justa. A pandemia tem sido uma oportunidade para os estados reverem suas medidas econômicas e políticas, e de tornarem a igualdade de gênero uma prioridade. É preciso usarmos o binóculo quando consideramos a criação e execução de políticas públicas e tomadas de decisão, o que leva à importância da nossa responsabilidade no exercício da cidadania. Isso significa que os avanços para uma sociedade mais coesa aos princípios da igualdade de gênero dependem sim deles, mas também dependem de nós.


Para conferir as referências citadas no texto, basta clicar no número respectivo de cada uma delas. 

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