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Uma reflexão sobre a necessidade da produção da paz hoje no Brasil

Uma reflexão sobre a necessidade da produção da paz hoje no Brasil

Por Maria Luiza Pacheco*

Esses dias, em uma conversa informal me perguntaram sobre o motivo da minha viagem à São Paulo. Eu respondi que tinha ido apresentar um trabalho em um congresso sobre paz. E então a pessoa me indagou: “Mas como assim? ‘Paz’, ‘paz’?”. Eu respondi que sim: “paz”. Sai de lá reflexiva sobre o breve diálogo, ruminando sobre essa palavra que tanto havia pronunciado e naturalizado nos últimos dias antes, durante e após o XI Congresso Latino-americano de Investigação para a Paz (CLAIP) na Universidade de São Paulo (USP).

Gostaria de compartilhar uma epifania sobre isso, mas na verdade este episódio me trouxe ainda mais indagações. Me questionei a respeito dos possíveis significados da paz, sobre o fantasma da utopia que está à sombra dela e sobre a grande variação de sentidos que uma palavra tão pequena poderia ter. E então, novamente, me peguei constatando que tudo que acontece no cenário internacional, acontece aqui, localmente em nossas vidas, em nossas mais distintas realidades. E falar sobre “paz” não seria diferente. 

O evento CLAIP reuniu pesquisadores de diversos países latino-americanos, como Colômbia, Brasil, Venezuela, Guatemala, Honduras, Argentina, México, Bolívia e Peru a fim de compartilhar perspectivas e trabalhos sobre tudo aquilo que permeia os Estudos para a Paz. Temáticas como segurança humana, migrações, violências, feminismo, racismo, desarmamento, operações de paz, humanitarismo e conflitos civis foram explorados não apenas por internacionalistas, mas também por estudantes e profissionais de Ciências Econômicas, Ciência Política, Psicologia, Filosofia, Antropologia, Comunicação, Direito e outros. Esta diversidade revela a ausência de fronteiras que os Estudos para a Paz propõem, uma área que vai além de teorias ou normas, acolhendo a ideia de um “todo” e também de “um”.

Não a toa a Colômbia foi o país mais mencionado durante o evento. Sua história de conflitos complexos, múltiplos atores, violências e graves violações dos direitos humanos fazem dela um “prato cheio” para o pesquisador de Estudos para a Paz, a linha de pesquisa que incorpora o compromisso mais claro e explícito com a não-violência, buscando “identificar e analisar a diversidade de mecanismos geradores de violência, sempre na perspectiva de lhes contrapor dinâmicas e instrumentos de paz” (Pureza, 2005, p.04).

Um dos membros da Mesa Redonda Conflitualidades contemporâneas, ações humanitárias e a construção da paz na América Latina”, professor, colombiano, e ex integrante do ACNUR na área de Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário fez considerações interessantes sobre o seu país. Ele enfatizou a complexidade das estruturas de poder, a política econômica e os atores envolvidos nos conflitos, indagando sobre o conflito armado ter como explicativo a ordem política, econômica e social, em um contexto de lógica do desenvolvimento do capital e que devemos nos atentar às subjetividades deste país para compreender suas transformações. Ele ainda chamou atenção para a valorização de cada ator social que influencia e é influenciado pelos conflitos (como o narcotráfico), para a justiça social, as peculiaridades do Triângulo das Violências no país e para questões de gênero como a masculinização militar.

Leia mais: Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: da consciência individual ao impacto global

A minha intenção neste artigo é refletir sobre o Brasil, mas não pude deixar de dar visibilidade para algumas das perspectivas abordadas pelo Professor sobre o caso colombiano que poderiam se transferir, com as devidas adaptações, para o cenário brasileiro. Uma delas, a mais perspicaz na minha opinião, foi a sua indagação do porquê sempre falarmos dos conflitos e não da paz em si. Devo ressaltar que o título desta edição do CLAIP foi: “América Latina Tecendo Culturas de Paz”. Então por que não discutir alternativas para a construção de uma cultura e educação para a paz no país? Esse foi o ponto de partida para os meus questionamentos sobre a realidade brasileira hoje e que me motivou a compartilhar um fato curioso: o congresso ocorreu em São Paulo, mas surpreendentemente não havia tantos brasileiros como eu imaginava.

Em questão de proporcionalidade, a imensidão do território brasileiro perante os seus vizinhos justificaria o português hegemônico nos corredores, salas e auditórios. No entanto, ouvia-se majoritariamente o espanhol. Ainda posso escutá-los ao fechar os olhos… “buenos días, pero, entonces” não apenas dos participantes como também dos palestrantes e membros de mesas redondas. Então quais seriam as razões para um número reduzido de pesquisadores brasileiros em um Congresso latino-americano sobre paz? Confesso que não sei a resposta e proponho uma reflexão sobre isso sob o um ponto de vista crítico que aponta três principais contradições em relação a essa presença limitada.

A primeira é o fato do Brasil ter tradicionalmente um posicionamento externo em favor da resolução pacífica de conflitos, salvo os recentes episódios envolvendo o Presidente da República que podem ter desestabilizado esse costume. No entanto, tais fatos não devem apagar a clássica amistosa e diplomática apreciação internacional brasileira por muito tempo conservada.

O segundo ponto é a participação e o crescente envolvimento do Brasil em mais de 50 Operações de Paz, a exemplo da Angola, Moçambique, Timor-Leste e Haiti. Atualmente o país está presente em missões no Líbano, Sudão do Sul, Seara Ocidental, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Darfur, Chipre e Abyei. A atuação e cooperação brasileira nas missões contemplam a interdependência entre segurança e desenvolvimento e buscam dar ênfase na prevenção de conflitos e à solução pacífica de controvérsias.

O terceiro ponto é a presença de forma crônicas de violência direta, estrutural e cultural no Brasil. Em um país com 12,8 milhões de desempregados e 11,3 milhões de analfabetos (IBGE, 2018), ocupando o 9º lugar em desigualdade social (Oxfam Brasil, 2018), com 17.900 mortes violentas apenas em 5 meses (NEV/USP, 2019), 5.054 Km² de floresta Amazônica desmatada nos últimos 12 meses (Sistema de Alerta de Desmatamento, 2019) e um dos primeiros lugares em feminicídio (principalmente de mulheres negras) e mortes de homossexuais e transexuais (Atlas da Violência, 2018), como é possível não ter um número significativo de produções e pesquisas sobre paz?

Esses três tópicos devem ser questionados quando se constata a escassez de bibliografias brasileiras sobre Estudos para a Paz e o reduzido número brasileiros no Congresso. É preciso que se produza pesquisas, análises, hipóteses, políticas e alternativas para a paz. É preciso desnaturalizar as violências no Brasil e valorizar a educação e a cultura de paz nas escolas, nos ambientes sociais e de trabalho e nas famílias. O trabalho de investigação e o compartilhamento de conhecimento científico sobre construção da paz é essencial para sua aplicação na prática, assim como qualquer outra ciência.

A Colômbia foi o país mais falado no congresso, não atoa como eu mencionei. Mas o Brasil também poderia ser um foco exploratório deste assunto, por sua história de violência estrutural que se revela predominantemente na desigualdade social, na pobreza e na insegurança, por sua violência cultural que sustenta fenômenos como o sexismo, o racismo e a homofobia, legitimando outras violências e perpetuando relações de poder desiguais que limitam, definem e marginalizam pessoas e grupos sociais e a violência direta que mata mulheres, homens, crianças, favelas, aldeias e florestas todos os dias. 

Provavelmente ainda irei remoer esse assunto e tentar torná-lo mais palpável para prosseguir com as minhas pesquisas. Enquanto isso, deixo o meu convite: vamos produzir paz – hoje – no Brasil. É urgente!

*Conheça a colunista:
Maria Luiza Pereira Pacheco é internacionalista e pesquisadora, graduada em Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha e mestra em Relações Internacionais – Estudos da Paz, Segurança e Desenvolvimento pela Universidade de Coimbra. Tem experiência em comunicação social nas áreas de direitos humanos, empoderamento feminino e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Atua em Terceiro Setor e assessoria internacional, e atualmente pesquisa processos de paz e a participação das mulheres.

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