Texto produzido pelas delegadas Mélanie Layet, Camila Almirall e Daniela Godoy
Marcado pela discussão sobre mulheres ao redor do mundo, o mês de março tem data simbólica em Nova York, onde acontece o fórum NGO CSW 62. Realizado anualmente, o evento promove, em paralelo ao fórum da Comissão das Nações Unidas sobre a Situação das Mulheres (CSW), um encontro entre centenas de organizações e indivíduos preocupados com a situação feminina no mundo, reunindo milhares de ativistas internacionais para discutir assuntos voltados a mulheres e meninas, de forma a compartilhar estratégias e melhores práticas, além de pressionar governos para que implementem resoluções e tratados já assinados focados nos direitos das mulheres, igualdade de gênero e empoderamento de mulheres e meninas. O tema deste ano foi “Desafios e oportunidades para alcançar a igualdade de gênero e empoderamento das mulheres e meninas rurais”.
Durante o Consultation Day, que aconteceu no dia 11 de março, representantes do Brasil, Trinidade e Tobago, Nova York, Canadá e Nova Guiné discutiram no painel “The Concerns of Rural Women”, trazendo o panorama da situação de mulheres rurais em suas localidades, principalmente em face dos impactos decorrentes das mudanças climáticas e dos conflitos envolvendo acesso e escassez de recursos hídricos.
A moderadora da conferência, Esther Mwaura, inaugurou o painel falando da necessidade de as mulheres rurais tomarem suas próprias decisões. Ela esteve na Conferência de Beijing em 1995 e fundou o movimento GROOTS no Quênia, que reúne mais de 3.500 organizações de mulheres que trabalham com a defesa de direitos femininos na África. Esther ressaltou as dificuldades enfrentadas pelas mulheres africanas, principalmente jovens, para obterem vistos para comparecerem ao NGO CSW 62 e criticou a expressão generalista empregada no título do evento “mulheres rurais”, pois, em sua visão, não existe uma uniformidade de características que abranja todas mulheres ou comunidades rurais em uma única categoria generalista denominada “rural women” (“mulheres rurais”). Para ela, há, de fato, uma vasta diversidade de meninas e mulheres que vivem em áreas rurais, e é a pobreza e a precariedade de suas condições de vida que devem ser destacadas e endereçadas nas discussões.
Esther também endereçou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), afirmando que o motivo pelo qual ainda não se verificou um progresso efetivo em relação às metas é a carência de dados confiáveis e suficientes sobre as condições de vida de meninas e mulheres que vivem em áreas rurais, defendendo que o investimento em produção e levantamento de dados deve ser uma prioridade para a melhoria das condições de tais meninas e mulheres. A moderadora do painel concluiu sua fala destacando a importância de se abordar as problemáticas afetas às condições de vida delas de maneira holística e integrativa, ou seja, considerando a universalidade, comunicabilidade e indissociabilidade dos problemas, evitando, assim, a setorização e a fragmentação dos aspectos da vida das mulheres.
Gia Gaspard Taylor, presidente da Rede de Mulheres Produtoras Rurais de Trinidade e Tobago deu início à discussão abordando o impacto das mudanças climáticas na agricultura, na vida de mulheres de áreas rurais e no acirramento das desigualdades entre homens e mulheres. A ativista deu especial destaque às repercussões das mudanças climáticas no agravamento das desigualdades de gênero, citando como exemplo a inferioridade dos valores de salários auferidos por mulheres de áreas rurais em relação aos homens, os diferentes papéis de gênero exercidos por homens e mulheres em sua relação com o território em constante mudança e a ausência de políticas públicas que associam questões de gênero e mudanças climáticas.
Segundo a palestrante, as mudanças climáticas são responsáveis por enchentes, deslizamentos de terra, erosões e perdas de moradias, sendo que as comunidades rurais são especialmente atingidas e vulnerabilizadas por seus efeitos negativos. Para Gia Taylor, o empoderamento de meninas e mulheres rurais é um passo importante para a redução de danos das mudanças climáticas nos países em desenvolvimento. A palestrante também apresentou alguns dados sobre o sistema de agricultura do seu país: “A indústria extrativa proporciona 54% da receita do país. Isso é cerca de 3 bilhões de dólares e 12% da força de trabalho”. Ela argumentou a favor da necessidade de se atribuir responsabilidades para as empresas que desenvolvem atividades extrativas, em razão dos impactos negativos de suas atividades nas mudanças climáticas nas comunidades rurais.
O Brasil foi representado no painel por Maria Luisa Mendonça, diretora da Rede de Justiça Social e Direitos Humanos. Ela iniciou sua fala pontuando sobre o direito de mulheres à propriedade de terras, uma vez que quando falamos desse direito, estamos nos referindo a vários outros direitos fundamentais, como direito à alimentação, à habitação, ao empoderamento feminino, e ponderou: “Quando falamos desse tema, nós não estamos falando de um assunto isolado, estamos falando por exemplo da mudança de clima e isso afeta todos nós”.
Maria Luisa comentou sobre uma das principais demandas que mulheres rurais enfrentam no Brasil: “Uma das principais questões que o movimento de mulheres rurais no Brasil está demandando mudança é sobre ter sempre seus nomes como proprietárias de terras, mesmo que elas não sejam as donas”. Maria Luisa também ressaltou a necessidade de mudança do sistema alimentício e de água: “Quando tem uma especulação do preço da comida onde se tem mercado de commodities, o preço do alimento aumenta consequentemente. Isso afeta principalmente as mulheres, que são desproporcionalmente atingidas porque elas investem uma grande porcentagem de suas baixas rendas em comida. Como o modelo atualmente de agricultura usa químicos e combustíveis fósseis, elas são mais uma vez impactadas, porque são as responsáveis em prover água e comida”. Com a discussão inserida nesse contexto, Maria Luisa falou sobre a importância de nos solidarizamos com agricultores locais, darmos suporte a produtores de comida orgânica e termos diversidade no sistema alimentício.
A representante da ONG Voice for Change na Nova Guiné, Lilly Be’Soer, ressaltou a necessidade de implementação efetiva das políticas públicas já existentes, para que mulheres e meninas de áreas rurais passem a ter informação e infraestrutura suficientes para combaterem a violência e marginalização por elas sofridas. Lilly também destacou que parte da dificuldade na garantia dos direitos das mulheres na Nova Guiné advém de aspectos culturais e sociais.
Uma das falas mais emocionantes do painel foi a de Ruth Faircloth, da organização sem fins lucrativos “Rural & Migrant Ministry”, atuante no Estado de NY. Ruth destacou a necessidade de se trazer os problemas de meninas e mulheres rurais para a discussão, mesmo para os países que, num primeiro olhar, parecem não enfrentar tal problema, como é o caso dos Estados Unidos. Em um discurso de cunho pessoal e profissional, ressaltando sua origem no campo, o trabalho que exerceu enquanto menina e sua trajetória pessoal e profissional de luta e empoderamento, Ruth pontuou a necessidade latente de atenção, por parte da sociedade civil e dos governos, às mulheres rurais que são violentadas, passam fome e não têm acesso a métodos contraceptivos.
Além disso, a ativista denunciou o isolamento de mulheres e meninas que vivem em áreas rurais no Estado de Nova York, o agravamento do racismo nessas áreas, o cotidiano de violências e abusos perpetrados pelos cônjuges e proprietários das fazendas em que mulheres rurais trabalham, além da carência de representação e aconselhamento legal direcionada a essas mulheres, afirmando, por fim, que deseja ver mudanças reais nessas situações e que todas as mulheres devem ser respeitadas pelo Estado e pela sociedade.
Em sua conclusão, Ruth compartilhou, emocionada, uma gravíssima situação de violação de direitos sofrida por sua mãe e por toda a sua família, que culminou com a retirada de sua irmã recém-nascida, ainda na maternidade, por parte do Estado e autoridades médicas, pelo fato de sua mãe já ter outros filhos, ser de origem rural e possuir poucos recursos materiais. Segundo Ruth, foi dito à sua mãe que a criança havia falecido após o parto, mas no funeral da criança, notou-se que o caixão estava vazio, e a criança nunca foi encontrada. Posteriormente, Ruth descobriu que não foram sequer registradas certidões de nascimento ou óbito em nome de sua irmã Mary Evelyn, e, hoje, ela convive com a dor de ter uma irmã alienada de sua família e não identificada, um violência imensurável contra sua família e sua própria identidade: “That needs to stop!” (“Isso precisa acabar!”), ponderou Ruth. E concluiu: “We are somebody” (“Nós somos alguém”).
A Senadora Independente do Canadá e advogada de direitos humanos Marilou McPhedran, finalizou a conferência com importantes considerações sobre a necessidade de implementação dos tratados, legislações e políticas públicas já existentes que são sensíveis às questões de gênero, além da importância do papel exercido por mulheres defensoras de direitos humanos ao redor do mundo. Como Senadora independente, Marilou McPhedran não está vinculada a nenhum dos partidos políticos que compõem o governo eleito do Canadá, de forma que seu posicionamento refletiu uma visão pessoal e profissional, e, não, do governo canadense em si.
De acordo com McPhedran, elevar as vozes de meninas e mulheres de áreas rurais é crucial, mas é imprescindível que todas as vozes levantadas estejam vinculadas a ações com resultados práticos efetivos para produzir mudanças e permitir que meninas e mulheres de áreas rurais possam viver seus direitos. Para a Senadora, direitos podem ser vividos, e não apenas alegados, ratificados ou perseguidos, se aplicarmos diretamente o arcabouço de normativas internacionais e políticas públicas aos contextos locais de meninas e mulheres que vivem em áreas rurais: “É imprescindível que comecemos a tratar das questões das mulheres e meninas rurais de forma local. Já existem políticas e leis suficientes no âmbito internacional, é necessário implementar e efetivar tais medidas. Precisamos focar nos contextos locais e erradicar a ‘bolha diplomática’ existente no mundo todo e fazer com que a sociedade civil detenha voz, para que possamos, finalmente, ver as políticas e leis existentes no mundo todo sendo devidamente executadas”.
A Senadora concluiu sua exposição, afirmando que mulheres e meninas de áreas rurais de todo o mundo são a própria personificação da resiliência, rememorando o assassinato da líder indígena e ativista ambiental Berta Cáceres, em Honduras, por seu trabalho com a segurança e acesso à água e clamando para que não deixemos que essas mulheres sejam silenciadas, pois estamos todas interconectadas em nossas lutas: “Toda mulher é uma defensora de direitos humanos”.